Afinal, há sempre uma solução!
O nosso terreno está situado mesmo na fronteira com o município vizinho.
Há muito tempo atrás, a antiga fronteira entre os dois municípios tinha sido fixada cerca de 50 metros antes de uma ribeira grande que passa mesmo ao lado do nosso terreno, mas há dois anos atrás implementou-se uma nova lei de cadastro e depois, das devidas negociações entre os presidentes dos dois municípios, chegaram à conclusão que a fronteira entre os mesmos passava a ser a ribeira grande.
Certo dia, fomos ao nosso terreno para fixar os marcos da fronteira e quando nos aproximámos da parte oeste, recebemos a visita de 7, 8 pessoas da comunidade vizinha, Lauala, que vive perto da grande ribeira. Pretendiam que deveríamos recuar cerca de 50 metros dentro da nossa propriedade para se respeitar a antiga baliza. Tentei explicar-lhes várias vezes que, segundo a nova lei cadastral, a atual fronteira entre os dois municípios foi estabelecida como sendo a ribeira grande, mas para a minha surpresa total quanto mais tentava explicar-lhes mais eles se mostravam a favor da antiga…
Expliquei-lhes, também, que segundo a lei timorense nós podemos fixar as nossas fronteiras a 25 metros da ribeira e no caso de existir alguma inundação o estado timorense suportará os danos provocados, ou se preferíssemos aproximar-nos abaixo desta distância, neste caso iríamos suportar os eventuais estragos integralmente. Depois de muitas tentativas falhadas, cheguei à conclusão que continuar com isto era efetivamente: ”partir cascalho”, como diz o português, e propus-lhes, num futuro próximo, um encontro com os dois chefes das aldeias, de Hlalameta e de Lauala, para podermos arrumar esta confusão.
No dia posterior, apresentei o assunto diante do chefe do suco de Lauala, que tem o mais alto poder na respetiva área, que me disse que sabia da nova lei cadastral e do acordo entre os dois municípios para fixarem a fronteira entre os mesmos: a ribeira grande. Assegurou-me que poderíamos continuar, tranquilamente, os nossos trabalhos, pois ele haveria de falar com a comunidade para os informar acerca disto. Alguns dias mais tarde, o meu sogro juntamente com os dois jovens timorenses que trabalham connosco, foram ao nosso terreno com o propósito de colocar algumas estacas e estender um fio para podermos abrir os buracos e fixar os postes em betão, para cercar o mesmo. Novamente, receberam a visita de alguns vizinhos que muito irados arrancaram e atiraram as estacas para longe e um deles, muito nervoso, até pegou numa pedra e fez um gesto de a atirar contra o meu sogro!
No dia seguinte, lá foi o Daniel, uma vez mais, a caminho da casa do Liurai, que significa: o rei da respetiva área, antigamente reconhecido como o rei/chefe de tribo/família predominante, atualmente chamado chefe do suco (localidade), para tentar resolver novamente esta chatice…
Desta vez, depois de lhe contar o sucedido, pedi-lhe o favor e até insisti para nos encontrarmos juntamente com o chefe da aldeia da Hlalameta e com a comunidade de Lauala, no nosso terreno, para podermos solucionar este problema, pois queriamos avançar com os trabalhos do nosso projeto o mais urgentemente possível.
Finalmente, chegou o dia tão esperado do nosso encontro e somente apareceu o chefe da aldeia de Hlalameta, vieram algumas pessoas da aldeia de Lauala, o antigo proprietário do nosso terreno e outras pessoas da aldeia de Hlalameta. Depois de muitas discussões e ameaças de algumas pessoas de Lauala para com as de Hlalameta e vice-versa, devido à determinação do chefe da aldeia de Hlalameta que queria impor-se para estabelecer a fronteira mais perto possível da ribeira, eu decidi que deveria intervir para pôr um ponto final a todo este escândalo e para agradar tanto a gregos como a troianos, desisti da proposta do chefe da aldeia e aceitei que o marco da linha divisória fosse estabelecido muito perto do ponto onde as pessoas de Lauala queriam.
De repente, toda a gente se acalmou e cada um concordou com a decisão final!
Permita-me abrir um parênteses para compartilhar uma informação relativa às duas comunidades vizinhas. Embora as duas falem uma língua materna chamada mambae, os de Hlalameta que pertencem ao distrito de Aileu falam um mambae diferente do que é utilizado pelos da comunidade de Lauala, pertencente ao distrito de Ermera.
Estabelecemos um acordo de trabalho com o chefe da aldeia de Hlalameta, área a que pertence o nosso terreno, para contratar alguns jovens da comunidade que nos ajudarão nos trabalhos a realizar. Temos uma lista com 25 pessoas que trabalharão em equipas de 4, num sistema rotativo, durante 20 dias. Existem, ainda, outros dois timorenses, da nossa confiança, com contrato de trabalho e trabalham connosco há alguns meses.
Como o terreno onde desenvolvemos o nosso projeto está situado tão perto da comunidade de Lauala, embora não pertencendo ao distrito de Aileu, achámos por bem oferecer, também, a mesma oportunidade a esta comunidade de ganhar o seu sustento diário, pelo menos por algum tempo.
Mas, ao falar com alguns jovens da comunidade de Hlalameta acerca disto, entendi que eles não concordavam que os de Lauala estivessem a trabalhar no nosso projeto, pois no passado ocorreram várias situações delicadas entre as duas comunidades, relativamente a certos lugares de trabalho que haviam em Lauala e quando os jovens de Hlalameta pediram para ocupar estes postos de trabalho foram recusados, pois consideraram que eles não pertenciam àquele distrito e que deveriam pedir trabalho no distrito deles.
Contudo, no nosso conselho de família, decidimos que deveríamos avançar, oferecendo a mesma oportunidade para as duas comunidades, com a esperança que no futuro poderíamos ajudar na reconciliação e no restabelecimento do bom relacionamento entre as mesmas…
Tive uma reunião com o chefe do suco de Lauala e apresentei-lhe a nossa proposta de trabalho para com a comunidade de Lauala, pedindo-lhe para fazer uma lista com um representante de cada família da respetiva comunidade que quisesse trabalhar connosco, neste trabalho rotativo de 20 dias.
Passados 3 meses, há alguns dias atrás, recebi afinal a tão esperada lista com 21 pessoas, da comunidade de Lauala, prontas para iniciarem o seu trabalho rotativo.
Voltando à nossa “conversa”, no dia seguinte, esperançosos que os problemas acabaram, contudo com um certo misto de apreensividade para vermos o que haveria de acontecer-nos mais, recomeçámos a colocar as nossas estacas, a estender o fio e a cavar os buracos que futuramente haveriam de hospedar os pilares em betão para cercar o nosso terreno.
Desta vez, ninguém nos chateou mais e desde lá, até à data, estamos em paz!
Faz algum tempo, desde que começou a trabalhar a primeira equipa da comunidade de Hlalameta, 3 jovens e um homem de meia idade, e estamos a desenvolver, pouco a pouco, cada etapa do nosso projeto…
Neste tempo todo, as pessoas de Lauala, observaram de longe as nossas atividades, pois alguns estavam, creio, envergonhados com o escândalo e as confusões que tinham arranjado e outros pensavam, como é obvio, que depois do que sucedeu nós não queriamos mais trabalhar com eles…
Certo dia, no pequeno período de descanso de 10 minutos que nós oferecemos aos trabalhadores, aproximaram-se duas pessoas de Lauala e aproveitei esta oportunidade para falar com a nossa nova equipa, a segunda naquela altura, acerca das regras e do sistema do funcionamento do nosso trabalho. Convidei, também estas duas pessoas a assistirem à nossa reunião e fiz questão de sublinhar que as regras básicas de funcionamento da nossa equipa estavam fundamentadas no respeito mútuo, entreajuda, unidade e um espírito de amizade manifesto tanto entre os da mesma comunidade bem como de uma comunidade para com a outra, pois o nosso desejo era que num futuro próximo a comunidade de Lauala viesse também trabalhar conosco.
Realmente, é mesmo gratificante ver o contentamento e a satisfação destas pobres almas ao lhes concedermos também a oportunidade de ganhar, por algum tempo, o seu pão. Por outro lado estamos tristes e sentimo-nos impotentes em não podermos fazer mais por eles, por enquanto, pois estamos cientes das nossas limitações financeiras e do volume limitado de trabalho…
Por outro lado, as pessoas de Lauala, que sempre implicaram conosco por causa da fronteira do nosso terreno, sentiram-se muito incomodadas ao saberem que nós não tinhamos escolhido pagar-lhes com a mesma moeda e que continuámos a aceitá-los a trabalharem conosco. A meu ver, a situação mais constrangedora aconteceu quando a própria pessoa, que tinha ameaçado o meu sogro com uma pedra, precisou de 15 sacos de cimento e eu aceitei vender-lhos, a um preço mínimo, e até fiz questão de os levar com o nosso camião para a sua casa, sem nenhum custo adicional. Deveria ver a cara do nosso homenzinho!!!
Tive oportunidade de ler alguns livros, de vários escritores, mas o que mais me impressionou, de uma forma incrível, foi e continua ser a Bíblia Sagrada, pois para mim é uma fonte inesgotável de sabedoria que vem do Alto, de preciosas lições de ensino que vêm de um passado tão remoto, algumas a partir do ano 1500 AC, mas que são tão atuais, aplicando-se perfeitamente às nossas necessidades quotidianas, do século 21! Talvez muitos céticos, ou ateus, ao lerem isto, irão torcer o nariz, dizendo: “Hum, a Bíblia o tal livro envelhecido e ultrapassado!” Contudo, permita-me partilhar consigo uma das passagens deste maravilhoso livro, que é uma das minhas preferidas: Romanos capítulo 12, versículo 9: “O amor seja não fingido. Aborrecei o mal e apegai-vos ao bem.” Versículo 14: ”Abençoai aos que vos perseguem; abençoai, e não amaldiçoeis.” Versículo 17: “A ninguém torneis mal por mal; procurai as coisas dignas, perante todos os homens.” Versículo 18: “Se for possível, quanto depender de vós, tende paz com todos os homens.” Versículo 19: “Não vos vingueis a vós mesmos, amados, mas dai lugar à ira de Deus, porque está escrito: Minha é a vingança, eu retribuirei, diz o Senhor.” Versículo 20: “Antes, se o teu inimigo tiver fome, dá-lhe de comer; se tiver sede, dá-lhe de beber; porque, fazendo isto amontoarás brasas de fogo sobre a sua cabeça.” Versículo 21: “Não te deixes vencer por mal, mas vence o mal com o bem.” Acredito, plenamente, que se estes ensinos fossem entendidos e vivenciados, o nosso mundo estaria totalmente diferente… seria completamente revolucionado!
Durante a nossa vivência nesta ilha, os timorenses ensinaram-nos uma coisa fundamental: é preciso tão pouco para sermos felizes!!!
Pois, é isto mesmo, leu bem! Precisamos, na realidade, de tão poucas coisas para sermos verdadeiramente felizes, pois quantas mais pretensões de vida temos mais complicamos a nossa simples existência e vivemos debaixo de um contínuo impulso febril, em ter mais e mais coisas e aumentar as exigências do nosso viver, julgando que a felicidade consiste em adquirir dinheiro, bens, fama, ou poder…
A escritora judia, Clarice Lispector, surpreendeu muito bem esta realidade, que se aplica tão bem à maneira como encaram a vida os nossos amiguinhos timorenses: “As pessoas mais felizes não têm as melhores coisas, elas sabem fazer o melhor das oportunidades que aparecem em seus caminhos.”
O que mais me impressionou, neste povo, foi a capacidade de ficar contente com as poucas coisas que tem… Na simplicidade da vida que levam sabem saborear, de verdade, tudo o que a mesma lhes oferece, pois têm uma coisa que a nós nos falta e que é tão essencial: sabermos contentar-nos com pouco e sermos mais gratos a Deus!